sexta-feira, 17 de maio de 2024

Novo aeroporto (13): Para Lisboa, tudo

Junto como novo aeroporto em Alcochete, o Governo anunciou de uma assentada a 3ª travessia (ferroviária) sobre o Tejo e o TGV para Madrid, mesmo sem estimativa de custos para estas duas últimas obras, que vão importar em milhres de milhões de euros. A propaganda governamental prevaleceu sobre o sentido de responsabilidade política.

Mesmo em relação ao aeroporto, o Governo cuidou de dizer que a infraestrutura não será paga pelos contribuintes, mas não disse que não serão eles a pagar os enormes custos dos necessários acessos rodoviários e ferroviários.

Ou seja, mais uma vez, os privilégios de Lisboa como capital serão pagos pelos contribuintes de todo o País.

quinta-feira, 16 de maio de 2024

Praça da República (81): Não é a mesma coisa

1. A absurda proposta do Chega de acusar o PR de crime de traição à Pátria teve o destino que merecia na AR, ou seja, a pronta rejeição, acompanhada da condenação generalizada da iniciativa. Tudo bem, quando acaba bem? Nem por isso!

Por um lado, esta proposta do partido da direita radical mostra o risco da instrumentalização da criminalização e judicialização da opinião e do debate político. Ora, por mais controversa e criticável que seja a opinião do PR sobre a "reparação" às antigas colónias pelos males do colonialismo (que considero pelo menos insensata), é óbvio que ela não tem nenhuma relevância penal, só podendo ser censurada no foro político, como aliás foi, de todos os lados do expectro político.

À política o que é da política.

2. Além disso, e mais grave, se há algo que não pode ser politicamente banalizado é a responsabilidade penal do PR no exercício de funções. 

Descartando o antigo princípio monárquico da irresponsabilidade penal do chefe do Estado no exercício de funções - que o "Estado Novo" recuperou -, a Constituição de 1976 rodeou, porém, de especiais cautelas tal eventualidade, quer quanto à acusação (reservada à AR, mediante voto de 2/3 dos deputados, sob proposta de pelo menos 1/5 deles), quer quanto à competência judicial (o STJ).

Todavia, a iniciativa do Chega - que pode vir a ser repetida com outro pretexto - mostra que as cautelas constitucionais são insuficientes em casos de manifesto abuso de poder parlamentar. Seria lamentável banalizar a acusão parlamentar do PR, como tem sucedido com o impeachment nos sistemas presidencialistas, como os EUA ou o Brasil.

3.  Não falta quem considere que o aparecimento do Chega como partido da direita radical apenas completa o arco político à direita, tal como no campo da esquerda existe desde sempre a esquerda radical. 

Mas há um diferença essencial: é que enquanto a "esquerda da esquerda" não contesta o sistema constitucional e respeita as instituições vigentes, a "direita da direita" não só não esconde a sua hostilidade à Constituição, como não perde a oportunidade para degradar as instituições, como mostra este caso.

Neste aspeto, a esquerda radical e a direita radical não são equivalentes.

sexta-feira, 10 de maio de 2024

Euroeleições 2024 (3). A IL contra maior integração europeia

1. O 1º candidato da Iniciativa Liberal às próximas eleições europeias manifestou-se a favor da preservação da competição fiscal na UE, como fator de "diferenciação" nacional.

Ora, além de ser incongruente com a própria lógica do mercado único - que pressupõe um level-playing field para as empresas -, a competição fiscal entre os Estados-membros tende a gerar uma "corrida" para a baixa dos impostos sobre a atividade económica, que favorece os Estados-membros com menor despesa social, afetando por isso o "modelo social europeu" e contrariando a caracterização constitucional da economia da UE como "economia social de mercado" [art. 3º(3) do TUE].

A competividade fiscal alimenta o "dumping" social.

2. Ao contrário, todas as propostas de aprofundamento do mercado interno da União, como o recente relatório Letta, defendem a convergência ou mesmo a harmonização fiscal, incluindo a política de incentivos fiscais. 

No seu liberalismo radical, a Iniciativa Liberal acaba por convergir contraditoriamente com as forças anti-integração europeia, que, em nome da soberania nacional, se opõem à adoção de políticas comuns ao nível da União. Há muitas maneiras de exprimir hostilidade à integração europeia...

quinta-feira, 9 de maio de 2024

"Manifesto dos 50" (4): Contra a autogestão corporativa do Ministério Público

1. Uma das mais importantes propostas do Manifesto dos 50 para uma Reforma da Justiça, publicado na semana passada, consiste em «reconduzir o Ministério Público ao modelo constitucional do seu funcionamento hierárquico, tendo como vértice o/a Procurador/a-Geral da República, responsabilizando cada nível da hierarquia pela legalidade e qualidade do trabalho profissional das equipas».

A meu ver (pronunciando-me aqui a título pessoal), tal desiderato passa essencialmente pelo fim da autogestão corporativa do Ministério Público, que secundariza o papela do/a Procurador/a-Geral e centraliza o poder no Conselho Superior, onde os próprios magistrados dominam a seu bel-prazer.

Do que se trata, portanto, é de conformar o Estatuto do Ministério Público com a Constuição e fazer prevalecer o modelo constitucional de uma instituição hierarquizada, em que o/a Procurador/a-Geral ocupa o vértice da pirâmide organizatória e detém os poderes correspondentes, respondendo externamente pela instituição.

2. Constitucionalmente, o/a Procurador/a-Geral é nomeado pelo Presidente da República sob proposta do PM, o que lhe confere indiretamente uma especial legimitidade e autoridade democrática, como órgão supremo do MP (a começar pela repressentação deste junto dos tribunais supremos), o qual não depende do Governo nem responde perante ele, na cadeia de responsabilidade democrática própria da demais Administração pública. 

Sucede, porém, que, apesar desse destaque constitucional, o Estatuto do Ministério Público e a prática da instituição esvaziaram tal cargo do efetivo poder de governo da instituição, que foi transferido para o CSMP, dando azo a que um antigo PGR, o Juiz-conselheiro F. Pinto Monteiro (que exerceu o cargo entre 2006 e 2012), se tenha queixado de não ter mais poderes do que a "rainha de Inglaterra"

Para isso, importa atribuir-lhe não somente um poder geral de emitir instruções e diretivas sobre o cumprimento das tarefas do MP, mas também o poder de direção quanto à gestão dos quadros da instituição, bem como quanto às inspeções e avaliação de desempenho e quanto ao poder disciplinar, poderes hoje indevidamente confiados, sem escrutínio externo, ao Conselho Superior.

Para exercer o seu poder hirerárquico e poder responder externamente pelo MP, o/a PGR tem de ser titular efetivo do governo da instituição.

3. Além de ver reduzidos os seus vastos poderes, para que não tem a necessária legitimidade, Conselho Superior, que foi tranformado uma megaestrutura todo-poderosa, deve ser descorporativizado, deixando de ser um mecanismo de autogestão da magistratura, de expressão sindical, como é notório.

Quanto aos seus poderes, além de poderes consultivos junto do/a Procurador/a-Geral, o CSMP deve limitar-se aos poderes de aprovação do orçamento e do relatório anual do MP, sob proposta daquele/a.

Quanto à sua composição, deve ser reduzida a representação dos magistrados, de 11 para 5 membros (os mesmos que designados pela AR) e deve prever-se a inclusão de alguns membros externos por inerência de funções, nomeadamente o Provedor de Justiça e o bastonário da Ordem dos Advogados.

O atual autogoverno corporativo-sindical do MP não é compatível com uma instituição pública de estrutura hierárquica e que não pode deixar de estar sujeita a escrútinio externo, que só o/a PGR pode assegurar, e não o presidente do sindicato dos magistrados, como hoje ocorre.

Adenda
Novos desenvolvimentos do Manifesto: mais 50 subscritores e pedido de audiência do PR. E é para continuar!

Adenda 2
Até agora, as críticas ao Manifesto, designadamente as de origem sindical, como esta, assentam num equívoco: não questionamos a independência dos tribunais nem a autonomia do Ministério Público (que, aliás, não são a mesma coisa...), nem, muito menos, defendemos qualquer "controlo político da justiça". Se é por aí que vão, inventam fantasmas.

Novo aeroporto (12): Porque não apurar os custos?

Tudo indica que, seguindo a seleção enviesada da chamada Comissão Independente (que de independente nada tinha, não passando de uma delegação do lobby financeiro-imobiliário interessado), o Governo vai oficializar a escolha de Alcochete para localização do novo aeroporto, sem haver uma previsão fiável sobre os seus enormes custos, incluindo as acessibilidades. Por isso, faz todo o sentido esta renovada proposta dos promotores da opção de Santarém (cuja proposta ficaria tendencialmente a custo zero para o Estado), para uma avaliação independente dos custos públicos da opção Alcochete.

Mas, como é evidente, nesta fase do "campeonato", isso não vai ocorrer, pois o novo Governo está ansioso para apresentar obra. Continuamos especialistas em empurrar os custos de decisões políticas precipitadas ou mal-informadas para as próxiams gerações.

+ União (81): Também uma conquista de Abril

De entre os vários textos publicados hoje para assinalar o dia da UE, merece destaque este, da autoria de Tiago Antunes - que desempenhou muito bem o cargo de secretário de Estado dos Assuntos Europeus no anterior Governo -, intitulado "A Europa que Abril abriu", disponível na página digital do Expresso. 

Para além de defender que as próximas eleições do PE, daqui a um mês, devem ser centradas sobre a visão de cada força política para o projeto europeu, evitando a reedição requentada da recente campanha eleitoral interna para as eleições legislativas, o texto enuncia de forma clara os principais desafios a enfrentar no próximo quinquénio pela UE e, portanto, pelos deputados ao PE que vamos eleger. 

Um exercíco inteligente e convincente, por quem sabe do que fala, com conhecimento de causa.

Adenda
Infelizmente, não compartilho da opinião da comissária europeia Elisa Ferreira, de que António Costa pode vir a ser presidente do Conselho Europeu, apesar do inquérito penal no âmbito do processo Influencer. Não vejo como é que AC pode ser candidato sem arquivamento da investigação; ora, como aqui mostrei, o MP quer mantê-lo indefinidamente como seu refém, apesar do juízo do Tribunal da Relação de Lisboa sobre a falta de fundamento de todo o processo. E ninguém presta contas pelos abusos de poder do MP...

quarta-feira, 8 de maio de 2024

Corporativismo (58): "Quousque tandem?"

Quanto é que a OA se convence, de uma vez por todas, que a segurança social dos advogados não é matéria da sua conta (nem de nenhuma ordem profissional), e que é feio apoiar o "calote" de uma parte dos seus membros (mais de 1/5!) à CPAS, à custa da solidez financeira desta

Até quando é que o Estado vai permitir a atuação impune das ordens profissionais fora da esfera legal das suas atrbuições?

terça-feira, 7 de maio de 2024

Gostaria de ter escrito isto (36): Infâmia ministerial

Excerto do impecável artigo de J. M. Tavares, "A senhora é péssima, mas está proibida de se ir embora", no Público de hoje, sobre os execráveis termos da exoneração ministerial da presidente da SCML, a antiga Ministra Ana Jorge, e do despacho a impor-lhe a continuação em funções de gestão:

«Em resumo, Ana Jorge é acusada de incompetência, é corrida do cargo à pressa para não ser indemnizada e depois é ameaçada de cometer um crime se deixar as funções que incompetentemente exerce. Não sei se Ana Jorge é má ou excelente provedora da Santa Casa. Mas isto eu sei: o tratamento de que foi alvo é uma absoluta obscenidade. O mundo da política pode ser feio, porco e mau, como o filme de Ettore Scola, mas convém impor alguns limites ao descaramento. Quem trata pessoas assim não é gente séria».

Estes atos de pura infâmia política desqualificam qualquer governante e qualquer Governo.

Causa palestina (11): O massacre de Gaza

Cumpre ler isto: 

«Peritos da ONU para os direitos humanos expressaram hoje o seu "horror" com a descoberta de valas comuns com cadáveres de pessoas que tinham sinais de tortura, execução e de terem sido enterradas vivas pelos militares israelitas».

Se isto não são hediondos crimes de guerra, o que são? Washington e Bruxelas vão continuar a fazer de conta que não veem e a apoiar, militar e politicamente, o massacre israelita em Gaza?

Adenda
Um leitor faz duas observações: «a) Portugal também pertence à Nato e à UE, por isso também é cúmplice na destruição de Gaza; b) se fosse na Ucrânia, Washington e Bruxelas já teriam clamado por mais um processo por crimes de guerra contra Rússia.» Pois é, há duplicidades assim: por definição, os crimes de guerra dos nossos aliados não existem.

domingo, 5 de maio de 2024

Manifesto dos 50 (3): Contra a política do medo

1. Merece aplauso este oportuno artigo da Professora Maria de Lurdes Rodrigues - coautora do Manifesto dos 50 para a reforma da Justiça - contra o sentimento de medo inspirado pelos abusos do MP, que o processo disciplinar contra a magistrada Maria José Fernandes, por ter ousado criticar publicamente os abusos praricados, revela.

Com efeito, um dos traços do poder absoluto sem escrutínio externo é o silenciamento da crítica interna e o desterro de quem ouse divergir.

2. Mas não são somente os críticos internos que têm razão para ter medo, mas também os alvos preferidos do lawfare do MP: os titulares de cargos públicos, tendo a própria autora sido vítima da acusação do famigerado crime de prevaricação pelo Ministério Público quando foi Ministra da Educação, de que veio a ser judicialmente absolvida

Destaco esta passagem do referido artigo: 

«Hoje, quem ocupa cargos públicos tem medo de ser transformado em alvo do Ministério Público. E não vale aqui o popular ditado “quem não deve não teme”. Pelo contrário, o que retiramos da reiterada incapacidade de finalizar dezenas de processos com anos, ou de arquivamento ou prescrição [ou absolvição] de outros tantos, é que para temer não é preciso dever».

A receita é conhecida: uma denúncia oportuna de corrupção ou prevaricação, mesmo que patentemente malévola, uma manchete no Correio da Manhã soprada de dentro do MP, o imediato julgamento nas redes sociais, o arrastar da investigação por tempo indefinido, até ao arquivamento ou a absolvição judicial, epílogos quase sempre escassamente noticiados, quando o são, pela mesma imprensa que animou a sumária condenação pública sem defesa.

Ou seja, uma profunda subversão do Estado de direito constitucional (presunção de inocência, segredo de justiça, necessidade e proporcionalidade na restrição de direitos, julgamento em prazo razoável, etc.). Quando ninguém responde por estes abusos do MP, há de facto razão para ter medo.

Adenda
No seu célebre discurso de 1941 sobre as Four Freedoms - um dos mais inovadores textos da história dos direitos humanos -, o Presidente dos EUA, Roosevelt, incluiu a "freedom from fear" entre as principais garantias da liberdade individual. Eis um direito de que os titulares de cargos públicos não gozam entre nós.

sábado, 4 de maio de 2024

Manifesto dos 50 (2): É bom ter estes adversários

Vinda de onde vem, a oposição ao nosso Manifesto sobre a reforma da justiça não só não surpreende como nos dá razão quanto às nossas propostas. 

De facto, o sindicato do Ministério Público tomou o poder na instituição, tornando-se o seu porta-voz, em substituição do Procurador-Geral, e defende com unhas e dentes os privilégios da corporação, nomeadamente a imunidade a qualquer escrutínio interno ou externo (salvo o seu); alguns jornais, tal como o Correio da Manhã (ver a manchete da sua edição de hoje), e jornalistas que "bebem do fino" junto de fontes do MP, fazem gala no "espetáculo mediático" a que nos referimos no Manifesto e não querem perder esse papel; e no seu pedestre populismo, o Chega acha que todos os políticos, salvo eles-mesmos, são corruptos e merecem ser julgados e condenados sumariamente na praça pública, por iniciativa sem controlo do MP.

É bom ter adversários destes. 

sexta-feira, 3 de maio de 2024

Manifesto dos 50 (1): Ineficiência do sistema judiciário

1. Pronunciando-se sobre o primeiro dos indicadores da crise de justiça enunciado no "Manifesto dos 50" (de que sou cossubscritor), que é a sua inaceitável morosidade, sobretudo na justiça administrativa e na investigação penal, a Ministra da Justiça, além de imputar as culpas para os governos precedentes - como se o problema não tivesse décadas! -, aduziu entre os fatores a falta de magistrados.

Mas não tem nenhuma razão. Se pode haver eventualmente défice de funcionários, tal não sucede com os magistrados, pelo contrário: comparativamente, estamos na média europeia quanto aos juízes e a acima dela quanto aos procuradores, como se pode ver aqui. O problema está noutras causas: deficiente gestão das magistraturas, falta de avaliação do seu desempenho, incluindo quanto ao seu output, e uma atitude predominante de laxismo, incluindo quanto ao cumprimento de prazos processuais. 

Em vez de aumentar desnecessariamente o número de magistrados, o Governo deveria começar, sim, por uma avaliação externa independente da eficiência do sistema judiciário.

2. O que surpreende também entre nós é a complacência com que a imprensa e a opinião pública encaram a falta de resposta da justiça. Enquanto os atrasos e as falhas no sistema de ensino ou no sistema de saúde são implacavelmente denunciados (e bem!) e podem levar à demissão dos respetivos responsáveis políticos, o mesmo não sucede com o sistema judiciário. Ora, a justiça não é um serviço público menos essencial do que aqueles para vida dos seus destinatários e da coletividade em geral. 

Por um lado, embora estatisticamente só uma minoria seja diretamente afetada pela justiça, ninguém pode dizer que "daquela água não beberei". Por outro lado, a justiça é fundamento essencial do Estado de direito, na garantia dos direitos privados, na punição penal, na justiça administrativa e constitucional. 

Decididamente, temos de ser coletivamente mais exigentes com a justiça.

Adenda
Concordando com este post, um leitor acrescenta que «a justiça é também essencial para o desenvolvimento económico, o qual não se faz sem a aplicação dos contratos, [e] que boa parte do atraso económico português se deve à falta de confiança criada pela ausência de uma justiça célere e confiável». Tem toda a razão.

Adenda 2
Outro leitor lembra que, segundo o Estatuto do Ministério Público, no art. 140º, «a produtividade e a observância dos prazos definidos para a prática dos atos processuais aparecem apenas em quinto lugar entre os critérios de avaliação profissional dos respetivos magistrados e mesmo assim, "considerando o volume processual existente e os meios e recursos disponíveis"». Deve crescentar-se que as inspeções ocorrem normalmente apenas de cinco em cinco anos. Esta manifesta desvalorização do desempenho justifica tudo, a começar pela morosidade da investigação penal!

Praça da República (80): "Manifesto pela reforma da justiça"

1. Sendo conhecidas as minhas profundas críticas à situação da justiça e em especial aos abusos do Ministério Público (a que ainda ontem voltei), não podia deixar de derrogar a minha já antiga posição de não entrar em abaixo-assinados ou petições coletivas, para subscrever este Manifesto dos 50 pela reforma da justiça, que acaba de vir a público (e que está disponível neste site aberto pelos seus autores), sendo subscrito por personalidades de variados perfis profissionais e de muito diferentes convicções políticas. 

A grande transversalidade social e política dos subscritores traduz a ampla radicação das suas preocupações na coletividade nacional.

2. Trata-se, antes de mais, de uma "pedrada no charco" para alertar a opinião pública e suscitar um "sobressalto cívico" sobre a profunda crise da justiça, cujos traços principais o Manifesto enuncia: inaceitável morosidade processual, falta de transparência e de escrutínio público do sistema judiciário, abusos recorrentes do Ministério Público na investigação penal, sobretudo contra agentes políticos, incluindo a violação das garantias constitucionais quando à restrição da liberdade individual e proporcionando bárbaros julgamentos públicos em substituição do julgamento judicial.

A crise da justiça redunda sempre numa crise do Estado de direito, que aquela deve rigorosamente servir.

3.  O Manifesto pretende ser, acima de tudo, uma proposta de profunda reforma da justiça, com um robusto conjunto de medidas, tão ambiciosas quanto é grave a crise a que pretende responderÉ bom de ver esta "provocação" ao poder político e aos partidos políticos para encetarem uma tal reforma só pode chegar a bom termo e ultrapassar as inevitáveis resistências corporativas através de um "pacto de regime", nomeadamente entre os dois partidos de governo, PSD e PS.

É certo que os tempos de polarização política corrente não favorecem tal entendimento, que somente uma forte vontade política pode fazer vingar. Todavia, a noção de que esta reforma perde pela demora, agravando a crise da justiça, e que ela transcende os interesses partidários, tendo a ver com o bem comum da República, deveria prevalecer sobre os interesses imediatos da dialética entre o Governo e a oposição e os conflitos políticos conjunturais.


quinta-feira, 2 de maio de 2024

Um pouco mais de coerência sff (3): Abolição das portagens nas SCUT

1. Nunca deixei de manifestar-me, primeiro contra as autoestradas SCUT (por exemplo AQUI) e depois contra a redução ou abolição das portagens, uma vez instituídas. Por isso, não poderia apoiar o projeto do PS, aliás de acordo com o seu programa eleitoral, de tornar gratuitas algumas delas - que a seu tempo critiquei -, o qual, pelos vistos, vai ser aprovado, mercê do apoio do Chega, apesar da oposição do Governo.

O Governo PSD-CDS começa a pagar politicamente a sua situação ultraminoritária, como era de esperar. 

2. Porém, o que o Governo não pode fazer é vitimizar-se, acusando as oposições de "coligação negativa", muito menos de "conluiu" (que supõe um acordo), pela simples razão de o PSD ter feito o mesmo no ultimo Governo minoritário do PS, convergindo com a oposição de esquerda para aprovar várias medidas de aumento de despesa pública ou de redução da receita, incluindo a redução em várias SCUT no orçamento para 2021. 

Se o PS faz agora ao Governo PSD aquilo que não gostou que este fizesse ao Governo minoritário socialista, o PSD não pode agora queixar-se daquilo que ele próprio fez quando era oposição. Impõe-se um módico de coerência política a ambos os partidos de governo, que têm de viver com a fórmula de governo minoritário. 

Adenda
Um leitor comenta: «Que triste figura fazem ambos na história das portagens. Diminuir, ainda vá, mas suprimir? O PS não deve ter pressa de derrubar o Governo», nem - acrescento eu -  dar-lhe pretexto para se demitir e abrir nova crise política, imputando ao PS a responsabilidade. É um risco a evitar.

Adenda 2
As empresas de transporte ferroviário, a começar pela CP, têm razão de queixa contra a isenção de portagens em várias autoestradas do interior (e Algarve), pois não gozam de igual isenção da tarifa ferroviária que pagam à Infraestruturas de Portugal nas linhas ferroviárias das mesmas regiões, que este ano aumentou 23%! Parece evidente que, por exemplo, a isenção de portagens na A25, embaretecendo o seu uso, vai prejudicar o grande investimento público em curso na linha da Beira Alta. Em vez de se favorecer o modo ferroviário, como devia ser, desde logo por razões ambientais, favorece-se o modo rodoviário. Vindo do PS, é contraditório.

Adenda 3
Mesmo que esteja empolado nestas contas do Governo, o impacto acumulado da eliminação de portagens em várias SCUT nas finanças públicas não pode deixar de ser significativo, tornando mais árduo o objetivo do equilíbrio orçamental. Mas, como refiro acima, este caminho começou em 2020 com uma "coligação negativa" das oposições, entre as quais o PSD, contra o Governo Costa II.

Antologia do non-sense político (26): As forças armadas como penitenciária

Do blogue do ex-embaixador Seixas da Costa:
«A ideia de que o serviço militar poderia vir a ser uma tarefa para expiar delitos cometidos é tão absurda que se torna muito estranho que haja sido adiantada por alguém a quem cumpre promover [como ministro da Defesa] a dignidade das Forças Armadas no seio das instituições. Parem um segundo e pensem!»

Inteiramente de acordo! 

Como era de temer (5): O desaforo do MP

Passados quase 6-seis-6 meses de completo silêncio sobre a suspeita pública lançada, no âmbito do processo Influencer, contra o então PM, António Costa - levando à sua demissão e à subsequente crise política -, o MP veio agora fazer saber, através de "fonte ligada do processo", que «o agendamento da data para o efeito [para ouvir AC] só será feito em momento processualmente adequado, tendo em conta o calendário de diligências priorizado para a investigação».

Isto é demais! Primeiro, é gritante a obrigação de esclarecimento público sobre o processo, como hoje, mais uma vez, vem defender a Transparência Internacional em Portugal; segundo, quem devia dar o necessário esclarecimento público era a própria Procuradora-Geral, que foi quem, em 7 de novembro, anunciou publicamente a investigação contra Costa; terceiro, depois de o Tribunal da Relação de Lisboa, a propósito de outros suspeitos, ter reduzido a nada o processo Influencer, onde não viu nenhum crime, a única reação decente do MP - se a decência institucional ainda lá morasse - era o arquivamento do inquérito.

Ao anunciar que o inquérito se mantém e ao adiar sem prazo a audição do antigo PM, o MP confirma, sem margem para dúvidas, que o seu objetivo é mantê-lo indefinidamente como refém pessoal e político, indefeso perante o seu poder arbitrário e irresponsável.

terça-feira, 30 de abril de 2024

O que outros pensam (7): "O pior Presidente de todos"

A opinião de J. M. Júdice:

«Agora, com pena o digo, não tenho qualquer dúvida que [Marcelo Rebelo de Sousa] vai ficar na História como o pior presidente de todos».

Como mostra a minha série aqui no Causa Nossa sobre "O que o Presidente não deve fazer" - que vai em quase 50 episódios -, tenho sido, desde o início, um crítico persistente, mas durante muito tempo desacompanhado, do (mau) desempenho presidencial de MRS e das suas posições impróprias da função presidencial. 

Agora que os críticos de MRS se multiplicam, mesmo entre aliados e amigos, e que a degradação da sua cotação pessoal assume foros de irrecuperável, é caso para dizer: "eu bem fui avisando!".

Adenda
Entre as várias apreciações muito críticas do PR publicadas nestes últimos dias, é de destacar também a de J. Matos Correia no Expresso, «Há dias maus», pela qualidade do autor e por ser muito bem fundada. Acontece que, no caso de MRS, este dia particularmente mau não foi exceção.

domingo, 28 de abril de 2024

Não concordo (48): À justiça o que é da justiça

1. Apesar de ser muito crítico do lawfare antipolítico do Ministério Público e da sua ostensiva irresponsabilidade pública (por exemplo, AQUI), não penso que seja pertinente a proposta do presidente da AR, de "convidar" a PGR a ir explicar perante o parlamento o caso Influencer e o caso da Madeira, que levaram à demissão dos governos nacional e regional, respetivamente. 

Uma coisa é a sujeição da atividade geral do MP e da orientação do/a PGR ao escrutínio parlamentar, designadamente quanto à sua eficiência e quanto ao cumprimento das prioridades da política penal, em especial - o que lamentavelmente não tem acontecido -, outra coisa é uma interpelação parlamentar sobre processos concretos em curso de investigação pelo MP, cujo controlo externo deve manter-se reservado aos tribunais. É de ressalvar, porventura, o caso especial de inquéritos parlamentares. 

De resto, face à assumida irresponsabilidade da PGR - cuja demissão já defendi - quanto aos referidos inquéritos (cuja legalidade e pertinência ela própria deveria controlar internamente), não se vê que esclarecimento poderia resultar de tal audição parlamentar.

2. É certo que, pelo menos no caso Influencer - que os tribunais já arrasaram e que, portanto, já devia ter sido arquivado -, o MP instrumentalizou os seus poderes de investigação como arma de perseguição política, mas o parlamento não deve contribuir, pelo seu lado, para a lastimável politização da ação penal, que, de resto, os partidos podem condenar sem terem de "chamar a capítulo" a PGR.

Se o MP parece não se inibir em violar a necessária separação entre a esfera da justiça e a esfera política, a AR deve ser mais escrupulosa em observar tal separação.


sábado, 27 de abril de 2024

Não com os meus impostos (14): A Ordem dos Advogados que pague

1. Tendo a Ordem dos Advogados (OA) deixado de decidir durante mais de cinco anos um processo disciplinar aberto contra um membro seu, o Tribnal Europeu de Direitos Humanos acaba de condenar Portugal, ou seja, o Governo, a indemnizá-lo em vários milhares de euros, por denegação de justiça em tempo razoável.

Ora, parece evidente que, sendo a OA a única responsável pela referida infração da CEDH, o Governo deve diligenciar para obter a reposição da importância a que o País foi condenado, em vez de a fazer pagar pelos contribuintes em geral, através do OGE. Para punição coletiva, já basta a humilhação de sofrermos mais uma condenação em Estrasburgo.

2. Infelizmente, este caso ilustra como as ordens profissionais - neste caso envolvendo a OA, com especiais responsabilidade no respeito pelas regras do Estado de direito - negligenciam o cumprimento da principal tarefa pública que justifica a sua existência, que é a vigilância sobre os cumprimento das normas profissionais e o exercício da ação disciplinar, enquanto não poupam esforços nem recursos na representação e defesa dos interesses de grupo (que, aliás, não devia constituir missão de uma entidade pública numa democracia liberal).

É, por isso, de aguardar que o novo regime legal das ordens profissionais, recentemente aprovado, venha a melhorar substancialmente esta situação, justamente ao autonomizar, como se impunha há muito, a função de supervisão e disciplina em relação à função de representação e defesa de interesses profissionais.

sexta-feira, 26 de abril de 2024

Nos 50 anos do 25A (4): Que grande manifestação!




1. Na maré humana que em sucessivas vagas, durante várias horas, desceu a Avenida da Liberdade em Lisboa, do Marquês ao Rossio, para celebrar os 50 anos do 25 de Abril - em que também fiz questão de participar, após vários anos de ausência -, não foi notório somente o enorme empenhamento dos partidos de esquerda, dos sindicatos e outras organizações sociais, como é, aliás, tradicional.

De facto, na cauda do desfile também marcaram presença delegações da JSD e da IL, como para dizer que o 25 de Abril não é exclusivo da esquerda, e também é deles (como, de resto, se lê na faixa social-democrata, na imagem). E têm razão: também eles são beneficiários da liberdade política e da democracia constitucional, que foram os objetivos primordiais do programa do MFA.

2. Esta revindicação da Revolução pela direita liberal e democrática é especialmente de assinalar, quando as últimas eleições parlamentares conferiram uma nutrida representação à extrema-direita populista, tão antiliberal quanto antidemocrática, que obviamente não esconde a sua hostilidade à herança do 25 de Abril.

É por isso que a impressionante manifestação de apoio de ontem, quer pela especial mobilização das forças de esquerda, quer pelo espectro social e político alargado, assume uma espécie de resposta ao alerta causado pela ascensão da nova direita hostil ao regime constitucional. 

Bem precisávamos de uma manifestação assim!

quinta-feira, 25 de abril de 2024

Nos 50 anos do 25A (3): A caminho da vitória


Para mim, mais do que as famosas imagens do Largo do Carmo, mais tarde, a foto mais icónica da Revolução é esta de Eduardo Gageiro, ainda manhã cedo no Terreiro do Paço, quando a coluna de Salgueiro Maia (à esquerda), vinda de Santarém, festeja a desistência de uma força adversária enviada para os combater. Mais tarde, Maia comentará esta foto do seguinte modo (cito de cor): «estava a morder os lábios para não chorar; senti que aquele episódio anunciava a vitória do movimento»

E assim foi. Poucas horas depois, frente ao Quartel do Carmo, o mesmo Salgueira Maia seria o protagonista na rendição de Marcelo Caetano e do regime, culminando o triunfo da sublevação militar, que o povo de Lisboa e do resto do País iria transformar, ato contínuo, na mais dinâmica e bem-sucedida revolução popular da história nacional.

quarta-feira, 24 de abril de 2024

O que o Presidente não deve fazer (47): O dever de reserva institucional

1. As insólitas considerações do PR acerca da personalidade do anterior Primeiro-Ministro e do atual , nomeadamente a qualificação de Montenegro como "rural" e de Costa como "oriental", são manifestamente descabidas no discurso presidencial, por pelo menos três motivos: (i) porque violam manifestamente um elementar dever de respeito e reserva institucional do chefe do Estado; (ii) porque, embora de índole supostamente psicossocial, elas refletem os preconceitos típicos da elite lisboeta contra os políticos que vêm da "província" (caso de Montenegro) ou os que têm origem étnica exótica (caso de Costa); e (iii) porque foram proferidas perante a imprensa estrangeira, onde se impunha ainda mais discrição e prudência institucional do PR no seu juízo sobre os chefes de Governo.   

Uma conduta condenável, sem desculpas nem atenuantes.

2. Mais uma vez, e aqui de forma especialmente grave, MRS esqueceu duas distinções que são essenciais num Presidente da República, como representante de toda a coletividade: a distinção entre aquilo que ele pensa e o que pode dizer e a distinção entre aquilo que ele pode dizer numa tertúlia de amigos de confiança e o que pode dizer publicamente.  

É afinal a distinção entre um político de verbo incontinente e um PR que respeita a dignidade do seu cargo e a personalidade dos demais servidores da República com quem interage.

Euroeleições 2024 (3): O risco da deriva para a direita

1. O gráfico de cima representa a atual composição do Parlamento Europeu (PE), que soma 705 deputados, decorrente das eleições de há cinco anos. O gráfico de baixo apresenta a possível composição do mesmo PE, agora com 720 deputados, após as próximas eleições, segundo a previsão do Político

As principais mudanças previstas são os seguintes:
    - manutenção do peso relativo dos dois principais partidos europeus, o PPE (que em Portugal integra o PSD e o CDS) e o PSE/S&D (a que pertence o PS nacional);
    - perda significativa dos Renovadores (liberais) e dos Verdes;
    - aumento acentuado da representação dos dois partidos mais à direita, ou seja, o ECR e, sobretudo, o ID (que integra o Chega entre nós).

Ou seja, uma clara deriva do PE para direita, reflexo da correspondente evolução política em vários Estados-membros, incluindo Portugal.

2. Note-se que, não havendo um partido maioritário no PE (longe disso), o sistema parlamentar da UE tem assentado numa coligação expressa ou implícita dos partidos europeístas do centro do leque político (PPE, S&D, Renew e Verdes), quer para a eleição do/a presidente da Comissão Europeia e aprovação do seu programa político e da sua equipa de comissários, quer para efeitos de maioria legislativa e orçamental.

O principal risco da possível nova composição do PE estaria numa eventual maioria parlamentar das direitas (PPE+ECR+ID), cuja soma no quadro acima atingiria 358 deputados, apenas menos três do que a maioria absoluta (=361). Embora politicamente pouco viável, essa hipótese não deixaria de constituir um elemento altamente perturbador no desempenho político e legislativo do novo PE e na resposta aos desafios da UE nos próximos anos (financiamento, transição climática, alargamento, reforma institucional, etc.)

Eis um fator adicional para tornar mais importantes do que o habitual as próximas eleições europeias.

terça-feira, 23 de abril de 2024

Não dá para entender (39): Levar a sério as eleições europeias

Subitamente, os líderes dos dois principais partidos do regime democrático tomaram decisões bizarras sobre as respetivas candidaturas às próximas eleições do Parlamento Europeu.

Por um lado, sem precedente na história do partido e sem qualquer explicação pública convincente, o líder do PS resolveu despedir todos os nove eurodeputados socialistas em exercício - onde se contam três ex-ministros e dois ex-secretários de Estado de anteriores governos socialistas -, prescindindo da rica experiência por eles adquirida em Bruxelas e Estrasburgo, aliás geralmente bem avaliada, e das posições adquiridas na bancada socialista europeia e no PE e daquelas a que poderiam aspirar no próximo mandato. Por sua vez, também sem qualquer explicação pública, o líder do PSD decidiu prescindir do valor seguro do presidente da CM do Porto, Rui Moreira, como cabeça de lista, que era dado como certo por todas as fontes bem informadas (ver Marques Mendes no seu comentário de domingo à noite), trocando-o, à ultima da hora, por um jovem e politicamente incerto comentador político na moda, cujo registo político inclui uma candidatura a deputado nacional pelo CDS há alguns anos.

Não havendo nenhuma notícia de que qualquer deles tenha ensandecido subitamente, estas estranhas decisões só podem ser explicadas por desconhecimento sobre as exigências do mandato parlamantar europeu - que não é uma ociosa sinecura, como muita gente pensa - e por uma correspondente incapacidade para levar a sério o Parlamento Europeu e a sua importante agenda política no próximo quinquénio. Deveras preocupante, com efeito!

Adenda
Referindo-se ao caso do PS, um leitor objeta que o novo secretário-geral "tem todo o direito de renovar os eurodeputados socialistas, escolhidos por anteriores líderes".  Sim, mas: 1o, nenhum anterior líder sentiu necessidade de os substituir TODOS, longe disso; 2o, não há notícia de nenhuma hostilidade do grupo de eurodeputados à nova liderança; 3o, esta é uma das maiores delegações do PS no PE, preenchendo 9 dos 21 eurodeputados portugueses; 4o, o desempenho do grupo, quer na bancada do S&D, quer no PE, é generalizadamente considerado como muito positivo. Em suma: uma razia injustificável.

Adenda 2
Sobre o assunto vale a pena ver também esta reportagem no Público de hoje.

sábado, 20 de abril de 2024

Perguntas oportunas (2): Impunidade

A comentadora São José Lopes pergunta hoje no Público porque é que a PGR não se demite, depois da arrasadora decisão da Relação de Lisboa que reduziu a pó o caso Influencer, em que o MP, além de imputar uma série de crimes a várias pessoas, entre as quais dois ministros e um presidente de câmara municipal, submetendo várias delas a prisão preventiva, conseguiu também envolver no caso o Primeiro-Ministro, por delitos até agora não identificados, o que levou à sua demissão e à crise política subsequente.

A resposta mais evidente seria: porque não não lhe resta um pingo de vergonha institucional. A resposta verdadeira é, porém, a seguinte: porque entende que o Ministério Público, em geral, e a PGR, em especial, não têm de prestar contas a ninguém e que pode, portanto, invocar que a decisão do TRL foi "somente" sobre as "medidas de coação" determinadas pelo MP e prosseguir a pseudoinvestigação, a fim de manter o ex-PM como refém político por tempo indeterminado.

A verdade é que, entre nós, os abusos de poder do MP gozam de impunidade.

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Assim não vale (10): Um "programa de estabilidade" politicamente "ajeitado"

1. No seu último parecer sobre as perspetivas económicas e financeiras, já depois da nomeação do novo Governo, o Conselho de Finanças Públicas instava o Governo a apresentar no novo Programa de Estabilidade, que está obrigado a apresentar pelos normas da UE, «as contas [das novas políticas que pretende implementar] e anuncie o impacto orçamental de medidas como a recuperação do tempo de serviço dos professores, a valorização das forças de segurança e as descidas de impostos».

Ora, no Programa de Estabilidade hoje apresentado na AR, o Governo ignora totalmente essa recomendação do CFP e apresenta as perspetivas económicas e orçamentais em termos de "políticas invariantes", ou seja, sem o impacto das novas políticas que se comprometeu a seguir, quer quanto a nova despesa, quer quanto à redução das receitas fiscais. Por isso, o CFP entendeu não dar parecer sobre o documento.

Ou seja, a não ser que o Governo não pretenda introduzir no corrente ano orçamental nenhuma das medidas previstas  - o que obviamente é um contrassenso -, trata-se de um exercício de pura ficção política, sem nenhuma utilidade, que as oposições não podem aceitar de bom grado. 

2. Acresce que, estranhamente e sem qualquer explicação, os principais indicadores apresentadas pelo Governo não coincidem com as do próprio CFP, no seu referido relatório de há uma semana, que atualizava, em relação ao corrente ano, as previsões do orçamento aprovado no final do ano passado

Assim, tanto o crescimento do PIB como excedente orçamental previstos para esta ano são inferiores: o primeiro passa a ser de 1,5% (em vez de 1,6%) e o segundo passa a ser de apenas 0,3% (e vez de 0,5%), o que importa em cerca de 500 milhões de euros de diferença. Consequentemente, e mais grave, a descida do peso da dívida pública também é inferior: 97,5% em vez de 95,3%, mais de 2pp de diferença.

Sendo óbvio que os dados de partida dos dois documentos, tão próximos, não podem ser diferentes, o Governo resolveu claramente "ajeitar" os números, de modo a tentar reduzir antecipadamente o impacto orçamental negativo das medidas do seu programa político. Impõe-se que o Governo justifique devidamente estas convenientes alterações do quadro macroeconómico.

Depois da fraude da pseudodescida do IRS, não é admissível que o Governo "brinque" mais uma vez com os números em matéria de finanças públicas.

domingo, 14 de abril de 2024

Sistema eleitoral (9): A "ignóbil porcaria" de 1901

1. Não percebi o argumento de Rui Tavares no suplemento do Expresso desta semana sobre a reforma eleitoral de 1901 (Hintze Ribeiro), que veria a ser injustamente designada como "ignóbil porcaria", e sobre uma alegada afinidade política com o que se passa atualmente em Portugal.

Segundo o autor, a referida lei eleitoral teria visado salvaguardar o tradicional bipartidarismo e o rotativismo cartista, entre "regeneradores" e "históricos"/"progressistas" e dificultar o aparecimento de novos partidos. É certo que a divisão dos centros urbanos, designadamente Lisboa e Porto, em círculos eleitorais separados, agregados a zonas rurais adjacentes, conseguiu afastar os republicanos do  parlamento seguinte. Mas o novo sistema eleitoral, ao aumentar o número de deputados e ao substituir os círculos uninominais por círculos plurinominais com representação de minorias, só poderia ter resultados contrários aos assinalados pelo autor, facilitando a representação parlamentar de mais partidos, incluindo os republicanos, como se veio a verificar nas eleições seguintes, até ao fim da monarquia. As supostas intenções da “ignóbil porcaria” viram-se completamente frustradas.  

Argumento improcedente, portanto.

2. Também não vejo que relação tem a situação de 1901 com a atual, aliás pouco esclarecida pelo autor. 

Primeiro, não houve nenhuma alteração recente da lei eleitoral, nem se perspetiva nenhuma. Segundo, a combinação do sistema proporcional com círculos eleitorais muito grandes, com um limiar de eleição muito baixo (menos de 2% em Lisboa), só pode levar a uma elevada fragmentação parlamentar, como se está a verificar nas últimas eleições, sem que os dois grandes partidos do rotativismo governativo democrático tenham defendido ou apresentado qualquer proposta para contrariar esse tendência (salvo a tradicional proposta do PSD de diminuição do número de deputados, que no entanto tem tido sempre a oposição do PS).

Paralelismo sem fundamento, portanto.

Adenda
Conto-me entre os poucos opinadores a defender explicitamente (por último,  AQUI) uma relativa redução do grau de proporcionalidade vigente, em prol da governabilidade, da estabilidade política, da aproximação entre eleitores e eleitos e da racionalidade parlamentar, propondo a divisão dos círculos eleitorais maiores e a criação de um círculo nacional (mas não de compensação), encabeçado pelo candidato a PM de cada partido, que desse utilidade aos votos em todo o país e que elegesse um máximo de 1/10 dos deputados (portanto, com um limiar de eleição de pouco menos de 4% a nível nacional). Mas, como mostram os recentes programas eleitorais dos dois principais partidos, a reforma eleitoral não tem nenhuma prioridade política.

sábado, 13 de abril de 2024

Um pouco mais de jornalismo sff (31): A inventona governamental da descida do IRS

1. Saúde-se o pedido público de desculpas do Expresso aos leitores, denunciando em termos fortes, como se impunha, a falsificação governamental sobre a valor da baixa do IRS, que afinal é menos de 200 milhões, em vez dos 1500 milhões de que o Governo falou em pleno debate parlamentar, apropriando-se, sem escrúpulos, da baixa efetuada pelo anterior Governo e já em vigor (na campanha eleitoral a AD prometera 3 500  milhões!...).

Todavia, não se entende como é que o semanário não se deu conta de que a medida anunciada na AR, tendo em conta os descontos previstos e os escalões abrangidos, não podia atingir aquele montante. A rotunda fake news do Governo é imperdoável, mas a falta de verificação pelo periódico também é censurável.

2. Também não andou bem o Público de hoje, que, já depois de descoberta a falsidade do anúncio dos 1 500 milhões na AR, coloca em título da notícia que «descida de 1500 milhões no IRS afinal só traz alívio adicional de 200 milhões», misturando alhos com bugalhos, só esclarecendo no corpo da peça o caso da apropriação da descida efetuada pelo PS no orçamento em vigor e de que, portanto, os contribuintes já estão a beneficiar no IRS cobrado este ano. Por conseguinte, o título correto seria: «Afinal, Governo só alivia o IRS em 200 milhões, e não em 1500, como anunciado na AR».

Como tenho escrito muitas vezes, o diabo está nos títulos, que é o que a maior parte das pessoas leem.

sexta-feira, 12 de abril de 2024

Contra a corrente (8): Benesses por atacado

1. Depois de o próprio líder socialista se ter adiantado a propor ao Governo um acordo sobre o aumento imediato das remunerações de várias categorias profissionais do Estado (professores, polícias, militares, etc.), também tenho poucas dúvidas de que o PS vai igualmente aprovar a nova baixa do IRS, embora reduzida, anunciada por Montenegro (poucos meses depois da entrada em vigor da redução do mesmos imposto decidida pelo anterior Governo socialista).

Todavia, duvido que tais medidas de aumento substancial da despesa pública e de redução da receita fiscal fossem tomadas por um Governo PS, por receio de que viessem a exigir a redução da despesa social (saúde, educação, proteção social, habitação, etc.), que sustenta o Estado social, ou a pôr em causa o saldo as contas públicas e a necessária redução do peso da dívida pública.

Também aqui, não se pode ter sol na eira e chuva no nabal.

2. É certo que que, como mostrou há dias o Conselho das Finanças Públicas, confirmando as previsões do anterior Governo, são muito positivas as perspetivas económicas e financeiras herdadas pelo novo Governo - como nenhum outro, há muitos anos -, e o aumento do rendimento disponível que aquelas medidas implicam pode mesmo estimular o crescimento económico previsto, por aumento da procura interna.

Todavia, além de se traduzirem num política pró-cíclica, que pode pressionar a inflação, trata-se de medidas politicamente irreversíveis, com impacto significativo permanente no aumento da despesa e na redução da receita pública, que dificilmente podem considerar-se prudentes num País com o elevado nível de dívida pública (e do seu custo) e de despesa social, como é o caso de Portugal.

Adenda
Um eleitor comenta que «o Governo de António Costa não o faria, mas que um Governo de PNS, sim, pois ele anunciou que seria menos exigente quanto ao excedente orçamental». Admito que sim, mas eu não apoiaria.

Adenda 2
Outro leitor argumenta que «a baixa do IRS anunciada pelo Governo é ridícula, por isso não é por aí que as contas públicas vão ao ar». Sim, eu próprio digo acima que é «reduzida» (ao contrário do que chegou a ser noticiado pelo spin governamental). O desvelo principal do prometido "choque fiscal" vai para a redução da IRC das empresas e outros tributos sobre a atividade económica; a marginal redução do IRS, anunciada à cabeça, é só para o Governo fingir que também alivia fiscalmente as famílias


quinta-feira, 11 de abril de 2024

Às avessas (7): Um proposta descabida

1. Uma das medidas mais estranhas previstas no programa do novo Governo, na área da justiça, consiste em questionar a atual separação entre os tribunais judiciais e os tribunais administrativos e fiscais, promovendo «um estudo e um debate sobre as vantagens e desvantagens» da sua unificação (ponto 6.2.1.).

Ora, salvo uma ou outra contestação isolada, não existe nenhum movimento nesse sentido entre os operadores judiciários desde o início do atual regime democrático. O dualismo jurisdicional é tradicional em Portugal e nos demais países de influência francesa. Está consagrado na Constituição, pelo que não poderia ser afastado sem revisão desta.

Pior do que não dar solução a problemas reais, é inventar soluções para problemas que não existem.

2. Em vez de pôr em causa a separação de jurisdições, o que se impõe é fazê-la valer onde ela tem sido indevidamente derrogada, retirando aos tribunais administrativos a competência para matérias que lhes deviam caber, como sucede, por exemplo, com os litígios relativos à defesa da concorrência e à regulação pública da economia, questões de natureza caracterizadamente jurídico-administrativa, que, segundo a Constituição, deviam ser da competência dos tribunais administrativos, mas cujo julgamento foi confiado a um tribunal especializado de âmbito nacional integrado na jurisdição comum, o Tribunal da Concorrência, da Regulação e da Supervisão.  

Aqui, sim, justifica-se um estudo e um debate sobre as vantagens e desvantagens desta (e outras) inconsistência judicial.

Adenda
Em contrapartida, sobre uma questão da justiça que tem estado em debate público, que tem a ver com o Ministério Público (nomeadamente, quanto à implementação do princípio da hierarquia interna e da prestação de contas externa), o programa de governo é totalmente omisso. Moita, carrasco!

Adenda 2
O que evidentemente ficou pelo caminho no programa da justiça foi a incompatibilidade entre a magistratura judicial (e do MP) com cargos públicos, que constava do programa eleitoral da AD, mas que o Governo violou flagrantemente ao incluir duas juízas, um delas como Secretária de Estado da Justiça, como denunciei AQUI. O que se não percebe é porque o Governo abandona, sem qualquer justificação, o programa com que venceu as eleições.